19.10.04

"...Quando o segundo me chega às mãos torno-me
audacioso e aspiro uma boa fumaça. A coisa vai,
não tusso e absorvo muito pouco ar. E depois, aquilo
começa a fazer o seu efeito. Desde há minutos que
me sinto bem. Tenho a impressão de planar. Não
encontro palavra mais justa para descrever esta
sensação. À minha volta tudo se dilui lentamente
numa espécie de algodão. Se quiser, posso não
observar nem ouvir nada do mundo exterior.
Basta querer e pronto! Estou só no mundo. Mas
se quiser fixar a minha atenção em qualquer
coisa, um objecto, um som ou um pensamento,
é fácil. Aquilo vem imediatamente para o primeiro
plano e o resto já não existe. Estou tranquilo, a
vida é bela e suave, o mundo é perfeito e maleável
e eu sinto-me voar docemente por cima de tudo.
Basta imaginar que estou a voar para que
verdadeiramente me sinta a voar.
Quanto às preocupações, adeus! Se praticamente
não tenho um centavo, o dinheiro que vá para o
diabo! Tudo se há de arranjar.
...É agora a quinta vez que o shilom me chega às
mãos e cada vez me sinto mais feliz. O tipo da
guitarra continua a tocar as mesmas árias
agridoces e nunca ouvi no mundo uma música
mais bela.
De vez em quando, como num sonho onde nos
sentimos voar, volto à terra por momentos.
Noto então que Johnny, o junkie, continua
deitado com a cabeça encostada à parede e
invade-me uma simpatia imensa por ele.
Vejo também outros tipos que se injectam
sem deixar de fumar. A esses também eu
concedo montes de amizade. De repente
tenho vontade de rir. Rio. E, estupefacto,
ouço-me rir com um riso incoercível, como
nunca ri em toda a minha vida, francamente,
com todo o meu coração, a garganta
escancarada, em gargalhadas de fazer
estalar o que resta das vidraças nas janelas
do quarto.
Isto desperta-me. Calo-me, um pouco
envergonhado. Lanço um olhar de viés
para os outros, que, nem sequer olharam
para mim. De repente volto a rir, porque
a vontade de rir é violenta, inexplicável,
mais forte do que eu..."

"Le Grand Voyage", Charles Duchaussois